Introdução
Encontra-se na obra História e
Consciência de Classe (1923)[1] de
Georg Lukács (1885-1971) o texto “A Reificação e a Consciência do Proletariado”
(LUKÁCS, 2003, p. 193), caro à Teoria Crítica, que faz a relação entre Karl Marx
(1818-1883) e Max Weber (1864-1920) e mostra o aspecto sistemático do
empreendimento marxiano, da dialética como método de exposição das mediações da
sociedade capitalista. A partir de obras como O Capital (1867), há o desdobramento da análise da sociedade
capitalista, reconstituindo conceitualmente, tendo como gérmen o conceito de mercadoria – tomada como o protótipo das
formas de objetividade e subjetividade. O conceito de mercadoria é tratado aqui de maneira dialética, não como coisa, mas
como estrutura.
A caracterização da essência da forma mercadoria
é dada em torno da teoria weberiana da racionalização e a teoria marxiana da
reificação, e apresentada como coisificação de relações sociais, negligenciada
pelo pensamento burguês, que não vê a mediação ideológica daquela forma na
vinculação entre subjetividade e objetividade. Marx (LUKÁCS, 2003, p. 193-194),
por seu turno, enxerga uma diferença qualitativa
(LUKÁCS, 2003, p. 195) entre a sociedade tradicional e as sociedades
modernizadas, onde há produção e a circulação em um mercado mundial, processo
pelo qual a mercadoria influencia todas as realizações da vida e passa a agir
em prol de sua própria justificação, na formação da consciência e do agir social.
Não é, pois, de qualquer sociedade que se trata, mas aquela em que a mercadoria
se alçou à forma universal (LUKÁCS,
2003, p. 196).
A reificação, portanto, não é um apêndice ao esforço teórico de Marx, mas
tem de acompanhar toda a análise em seu impacto sobre a consciência. Se na consciência reificada se ocultam as
relações sociais concretas, é dever da crítica dialética recompor o concreto a
partir do abstrato, com no mínimo uma teoria da formação dos conceitos. Uma
teoria econômica não-marxiana é, conseguintemente, imediatista (LUKÁCS, 2003,
p. 211; p. 213).
Aciona-se a partir de Weber, sua tese das afinidades eletivas, segundo a
qual os elementos em jogo se influenciam reciprocamente (LUKÁCS, 2003, p. 214).
A semelhança é estabelecida entre a empresa capitalista e o aparelho
burocrático do Estado. Por conseguinte, Lukács sustenta que o princípio
constitutivo da empresa e do Estado na modernidade é o cálculo (LUKÁCS, 2003, p. 215). Em termos de racionalização, mesmo
o âmbito jurídico não escapa aos modelos de impessoalidade, formalismo e
especialização. Logo, a submissão do sistema jurídico ao cálculo e à abstração,
produz uma relação de contemplação do indivíduo frente ao aparato técnico (LUKÁCS,
2003, p. 218).
A burocracia moderna é tomada do ponto de vista de suas formas
institucionais (objetividade) e da subjetividade, pelo que se observa que o
paradigma de divisão do trabalho penetrou até mesmo na ética (LUKÁCS, 2003, p. 221). O capitalismo na sociedade burguesa,
diferentemente de épocas anteriores, produziu uma estrutura unitária de
consciência (LUKÁCS, 2003, p. 221), uma mediação completa do sujeito ao objeto
através da forma mercadoria; ele se naturalizou como forma imediata de
consciência.
Lukács pretende fazer ver nas especificidades do capitalismo de Estado, a necessidade de retorno à dialética
materialista, no ponto de crítica à racionalidade abstrata ou identitária. De
inspiração hegeliana, expõe-se a tese de que a sociedade civil burguesa é a
eticidade cindida em seus extremos (LUKÁCS, 2003, p. 223-224). Em
contrapartida, retoma o conceito dialético de totalidade (LUKÁCS, 2003, p. 228), um emaranhado entre facticidade
e validade nos processos de modernização.
É destacada aqui a relação entre o processo de racionalização, ou seja, e
os efeitos dessa racionalização na metodologia - a perda da imagem da
totalidade. Com isso, a ciência moderna mostra-se incapaz de
autoconscientização, mostra sua inépcia para apreender o “substrato concreto de
realidade” (LUKÁCS, 2003, p. 229).
Lukács mostra que o individualismo metodológico (LUKÁCS, 2003, p. 230-238),
as robsonadas como dito por Marx, da
economia cai vítima da incapacidade de visualizar totalidade da sociedade,
erguendo dessa maneira uma barreira metodológica para a compreensão de crise (LUKÁCS, 2003, p. 231), não
estritamente as crises macroeconômicas, mas as máculas deixadas no substrato
material pela economia, amparadas em formas abstratas de racionalidade.
Ainda na obra História e
Consciência de Classe, Georg Lukács, no texto “Antinomias do Pensamento
Burguês” (LUKÁCS, 2003, p. 240), apresenta as tendências reificantes do
pensamento burguês, nomeadamente o racionalismo moderno (LUKÁCS, 2003, p. 246).
Ao fazer o diagnóstico dessas tendências, contrapondo-se a elas, mantém
operante o conceito hegeliano de experiência,
o qual trabalha na reconexão da racionalidade instrumental (formal) a seu
substrato material (conteúdo) com uma componente transcendente. Através daquele
conceito, pretende-se que com a filosofia não se faça mera epistemologia, mas
sim uma crítica radical ao formalismo
da ciência moderna, rejeitando-se a reificação que está em suas bases (LUKÁCS,
2003, p. 239). Portanto, relembrar a contraposição imanente é trabalho da
dialética.
Para tanto, Lukács mostra a
unilateralidade da filosofia crítica moderna (LUKÁCS, 2003, p. 240), em sua
incapacidade de escapar à estrutura reificada da consciência, que se detém
apenas na forma, não dando conta, por isso, do estado fragmentado do método.
Como, a título de exemplo, a transformação da Metafísica na “Analítica
Transcendental”, feita por Kant, este que se revela como a consumação da
filosofia moderna, com sua ideia de revolução
copernicana, onde o método da construção do objeto, operacionalizado pela
física e pela matemática, é passado para a Metafísica.
“Do ceticismo relativo ao método e do
cogito ergo sum de Descartes,
passando por Hobbes, Espinosa e Leibniz, o desenvolvimento segue uma linha
direta, cujo motivo decisivo e rico em variações é a ideia de que o objeto do
conhecimento só pode ser conhecido por nós porque e na medida em que é criado
por nós.” (LUKÁCS, 2003, p. 242).
O fundamento ontológico da
ciência e, consequentemente, da filosofia moderna é a reificação do método (LUKÁCS,
2003, p. 243), a própria universalização da forma mercadoria. Kant, por seu turno, faz a equivalência do conhecimento
formal e o “nosso” conhecimento. A dimensão do nós – a intersubjetividade compartilhada dos mundos da vida - fica,
desse modo, obstaculizada, porquanto pressuposta no sujeito transcendental.
Ora, o racionalismo moderno
surge da desconexão radical entre ciência e vida e, sobretudo, sociedade e
história; assim notado no desenvolvimento concomitante entre a filosofia e a
ciência moderna, com sua instrumentalização. O conceito de construção, a única
estratégia para responder à pergunta de onde repousa a pretensão de validade do
juízo sintético a priori, já denota o
sintoma da contaminação positivista, que ocasiona a tendência de aproximação
entre o método das ciências naturais e as do espírito; já mostra que o mundo moderno se tornou o império do
conceito. Como demonstra o diagnóstico weberiano[2], o
âmbito da práxis é condenado e rebaixado a um problema técnico, ao contrário do
que propunha na antiguidade clássica o pensamento grego pelo qual a técnica era
considerada como subordinada à vida política.
“Podemos igualmente dar como sabido
que todo esse desenvolvimento filosófico efetuou-se em constante interação com
o desenvolvimento das ciências exatas, e este, por sua vez, interagia
produtivamente com uma técnica que se racionalizava cada vez mais e com a
experiência do trabalho na produção.” (LUKÁCS, 2003, p. 244).
Ao expor os dilemas e
antinomias do pensamento moderno no âmbito prático, deseja-se, na esteira da Lógica de Hegel, que a necessidade e a
carência de ir além do pensamento abstrato provêm da eticidade da sociedade
burguesa cindida em seus extremos, donde a necessidade da dialética, que é por tal impulsionada. Esse rebaixamento da prática
a questões de técnica conduz a uma cisão irreconciliável entre o racional (o
abstrato) e o irracional (o conteúdo), levando ao esvaziamento da sacralidade,
bem como à negligência quanto aos fins últimos da existência (LUKÁCS, 2003, p.
245). O argumento de fundo é aqui a reconexão com a totalidade (LUKÁCS, 2003, p. 247), já que o ímpeto do método
reificado, incapaz de acessá-la, é uma sistematização coercitiva – em movimento
oposto, o irracional, ao ficar extrínseco, faz colapsar essa sistematicidade -,
remetendo ao conceito de coisa-em-si.
Somente a visualização do sujeito do objeto e vice-versa pode resolver essa
equação funesta, acessando a dimensão do nós.
Através de sua “Dialética transcendental”, Kant faz ver que a totalidade é
inacessível, ao tempo que, já aponta na direção, mais tarde por ele trabalhada,
de que ela é necessária e regulativa. A racionalidade moderna expressa o
problema mais fundamental da lógica: a impossibilidade de ligar os conceitos ao
conteúdo. É por essa razão que Kant, em sua terceira Crítica, precisa reconhecer uma legalidade
do contingente[3], ou uma contingência inteligível, um sistema
coerente de leis empíricas (LUKÁCS, 2003, p. 250).
“Mas
já se vê claramente, a partir do que foi exposto até aqui, o que significa o
problema do dado para o sistema do racionalismo: é impossível que o dado seja
deixado em sua existência e em seu modo de ser, pois, nesse caso, permaneceria
inelutavelmente ‘contingente’; ele tem de ser integralmente incorporado ao
sistema racional dos conceitos do entendimento. [...] A primeira alternativa é
o conteúdo ‘irracional’ se integrar totalmente ao sistema de conceitos. [...] A
segunda alternativa é o sistema ser obrigado a reconhecer que o dado, o
conteúdo, a matéria, penetram na elaboração, na estrutura e nas relações das
formas entre si; penetram, portanto, na
estrutura do próprio sistema de maneira determinante.” (LUKÁCS, 2003, p. 253).
Ao modo das ciências matemáticas, a produção
do objeto de conhecimento, em sua componente meramente formal, faz eclipsar o
conteúdo. Esse “produtivismo”, como irá criticar Adorno mais tarde, é o
princípio autocrático da racionalidade formal[4].
De outro lado, o ideal da dialética materialista é superar a dualidade
sujeito-objeto, compreendendo a diferença na identidade. Para Kant, a essência
concreta do sujeito-objeto idêntico é somente visualizada na ação moral, sua ética institui o primado
da razão prática, que tem mais reivindicações, sobre a razão teórica. Porém, a
crítica de Kant fica condicionada a um subjetivismo, pois é talhada à medida da
consciência individual; como filosofia prática, não supera o individualismo
metodológico nem o âmbito da mera contemplação,
porquanto sucumbe à interiorização (LUKÁCS, 2003, p. 263-265).
“O
princípio da prática como princípio da filosofia só é encontrado realmente,
portanto, quando se indica ao mesmo tempo um conceito de forma, cuja validade
não tenha mais como fundamento e condição metodológica essa pureza em relação a
toda determinação de conteúdo, essa pura racionalidade. O princípio da prática,
enquanto princípio de transformação da realidade, deve então ser talhado na
medida do substrato material e concreto da ação, para poder agir sobre ele
quando entrar em vigor.” (LUKÁCS, 2003, p. 267).
Assim, a necessidade de enunciar diferentemente os princípios da lógica
formal vem da própria eticidade, o que conduz à práxis é a dialética dos
conceitos em movimento (LUKÁCS, 2003, p. 269), a tessitura dos mundos da vida a
que Hegel dará voz em sua Lógica.
A situação paradoxal da era moderna é, então, traçada por Lukács.
Centrado no construtivismo, o mundo burguês se despede da transcendência como recurso teórico, já que os problemas deixam de
transcender o ser humano, voltando-se para sua utilidade prática
instrumentalizada. Mas, por outro lado, a própria reificação metodológica do
individualismo solapa seus pressupostos, suprimindo o caráter ativo da ação
social.
“O
aspecto fundamental dessa situação já foi realçado várias vezes por nós: o
homem da sociedade capitalista encontra-se diante da realidade ‘feita’ – por si
mesmo (enquanto classe) -, como se estivesse em frente a uma ‘natureza’, cuja
essência lhe é estranha; está entregue sem resistência às suas ‘leis’, e sua
atividade consiste apenas na utilização para seu proveito (egoísta) do
cumprimento forçado das leis individuais. Mas mesmo nessa ‘atividade’,
permanece – pela própria natureza da situação – objeto e não sujeito dos
acontecimentos.” (LUKÁCS, 2003, p. 284).
Acometido pelas patologias metodológicas do construtivismo crítico que
ele próprio teceu, o mundo burguês tenta conciliar com promessas a cisão
instaurada em sua eticidade, por exemplo, com a Arte. A sociedade moderna, de
outro lado, autonomizou a Arte, mas ao mesmo tempo a neutralizou, ao submetê-la
à reprodutibilidade técnica[5]; o
que suscita o paradoxo entre a perda de seu valor de culto e a necessidade de
autenticidade. O princípio da arte,
que revela o desejo pela construção de uma totalidade concreta, a manifestação
do sujeito-objeto idêntico, tal qual a comunidade entre produtor e produto,
desvenda assim o “segredo” da relação paradoxal da modernidade com a obra de
arte (LUKÁCS, 2003, p. 287). Entretanto, a obra de arte perdeu sua conexão com
a práxis, presa de um individualismo metodológico ao qual ela deve sua
autenticidade; o que resulta na inviabilidade da saída burguesa pela arte,
porquanto se mostra como um caráter meramente contemplativo (LUKÁCS, 2003, p. 293).
“A
gênese, a produção do produtor do conhecimento, a dissolução da irracionalidade
da coisa em si e o despertar do homem amortalhado concentram-se doravante,
portanto, na questão do método dialético.
Nele, a exigência do entendimento intuitivo (da superação do método, relativa
ao princípio racionalista do conhecimento) assume uma forma clara, objetiva e
científica.” (LUKÁCS, 2003, p. 295).
O que possibilita Lukács observar quanto ao método de Hegel - que, por
seu conceito de experiência reconduz a noção de práxis a uma prática
compartilhada (a um nós) -, que, com
seu conceito de saber absoluto, ocasionou uma mistificação do conceito (LUKÁCS,
2003, p. 307), parando aquém de si mesmo e reificando o método como extrínseco
à contradição, porque procurou retirar o conceito do estilhaço da história.
Nesse sentido, é preciso se atentar à obra marxiana, que entende a filosofia
como prática social transformadora, operada por um nós, o proletariado, que deve se reconhecer como tal e assim,
portanto, agir (LUKÁCS, 2003, p. 308).
Os Manuscritos de 1844
A tese com a qual Marx trabalha em sua obra, focando-se aqui sobretudo
nos chamados “Manuscritos de 1844” [6], é
a de que trabalho estranhado é uma
necessidade antropológica: o ser humano só se realiza na medida em que se vê
refletido no objeto de sua atividade. Na esteira de Rousseau[7], o
moderno conceito de autonomia significa o sujeito ser capaz de determinar a
partir de si suas próprias leis, ter diante de si não um Outro, mas si mesmo
refletido no objeto através do trabalho[8]. A
sociedade moderna ocidental, ao contrário, de maneira estrutural e sistemática,
se apropria indevidamente do produto do trabalho. Até o século XVII, vigorava
no âmbito teórico uma compreensão aristotélica da economia, sendo esta a
ciência das regras que regulam a esfera da vida doméstica da produção (ο οἴκος, a unidade produtiva), em
contraposição à política, na esfera nacional ou da πόλις. O que se constata nos processos de
modernização no Ocidente é, de outro lado, a gradual cisão entre o aparelho
burocrático do Estado e a denominada “sociedade civil burguesa”, a esfera
social despolitizada, regulamentada pela economia nacional, em completa tensão
ou contradição com o Estado[9]. Dessa
forma, Marx realiza uma crítica imanente da economia nacional com o fito de
expor suas contradições, ou seja, desvendar o estranhamento (Entfremdung) como alienação ou
expropriação (Veräusserung), fruto da
“des-exteriorização” (Entäusserung)
que faz com que o trabalhador esqueça de sua exteriorização no trabalho como
seu[10].
A atividade produtiva, o trabalho, é o princípio gerador da economia
nacional. Apenas a economia nacional se compreendeu como produto da energia e
dinâmica interna da propriedade privada, a riqueza
em seu movimento, ao contrário dos fisiocratas ou mercantilistas, de forma
estática[11]. Por
outro lado, é preciso mostrar sua unilateralidade,
a qual continua a pretender um mundo natural, a-histórico, sendo ela mesma –
enquanto processo de esclarecimento, secularização - o momento que proporciona
uma compreensão histórica, moderna do ser humano sobre si (MARX, 2004, p.
99-100). A economia nacional, por sua vez, apenas enuncia a propriedade privada, mas não a expõe (MARX, 2004, p. 88). Adam Smith, o “Lutero
nacional-econômico”, como chamou Engels, estabeleceu uma cientificidade
secularizada que possibilitou uma compreensão da essência subjetiva da
riqueza, no interior da propriedade privada, não como as relíquias sagradas ou fetiches (exteriores) do paganismo
católico, mas como produto do próprio trabalho (MARX, 2004, p. 99).
A sociedade moderna, que começa por prometer a emancipação individual,
termina por escravizar sistematicamente, imbuída em uma nova mitologia, um novo
Deus: o Capital – a autovalorização
do valor, o único sujeito livre[12].
A efetivação do trabalho estranhado
se dá nessa relação social assimétrica, em uma forma específica de dominação,
na qual o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, mas a um outro, que possa fruí-lo e ser-lhe
senhor. Desse modo, a propriedade privada, coisa dotada de valor de troca, não
é epifenômeno do trabalho estranhado,
contradição entre trabalhador e trabalho, mas sua decorrência lógica. A
contradição da propriedade privada, portanto, é a autocontradição do trabalho
estranhado (MARX, 2004, p. 87-88).
O
Capital – Crítica da Economia Política
A forma mercadoria é forma mais
imediata que aparece na sociedade
civil burguesa, estruturando todas as formas no mundo capitalista moderno[13].
Unidade de determinações contraditórias, entre qualidade (trabalho concreto) e
quantidade (trabalho abstrato), entre o valor de uso e o valor de troca, a
mercadoria não pode ser tratada como uma “substância individual”, à maneira
atomista, já que não aparece sozinha, mas em um contexto.
“Uma
coisa pode ser valor de uso, sem ser valor. É esse o caso, quando a sua
utilidade para o homem não é mediada por trabalho. Assim, o ar, o solo virgem,
os gramados naturais, as matas não cultivadas etc. Uma coisa pode ser útil e
produto do trabalho humano, sem ser mercadoria. Quem com seu produto satisfaz
sua própria necessidade cria valor de uso mas não mercadoria. Para produzir
mercadoria, ele não precisa produzir apenas valor de uso, mas valor de uso para
outros, valor de uso social.” (MARX. 1985, p. 49).
É já uma passagem do uno ao múltiplo, é já ela mesma uma totalidade, uma
coisa “cheia de sutileza metafísica e manhas teológicas” (MARX. 1985, p. 70).
Por ser a forma mais imediata, a mercadoria é o que aparece inicialmente como o
mais carente de determinações, tornando-se rica somente quando o capital se mostra em si e para si como
processo: em si como substância e para si como sujeito – a forma refletida da
mercadoria, que coloca para fora as determinações que nela estão em germe: a
forma dinheiro (MARX. 1985, p. 70). É preciso, portanto, lançar mão do método
dialético como método de apresentação
do capital, como método para crítica da Economia Política, explicitando, na
lida com os conceitos, as categorias econômicas forjadas e determinadas
historicamente[14].
A mercadoria, a quem se debruça sobre seu conceito, suscita, pois, uma
passagem da trivialidade à perplexidade. Enquanto valor de uso, algo para satisfação de necessidades, é algo morto,
passivo, não impõe complicações. Porém, enquanto valor de troca torna-se algo vivificado, ativo. O caráter místico
da mercadoria – ou seja, o caráter de um ser inanimado como que ressuscitado em
um novo animismo nesse processo de esclarecimento que é o capitalismo - não
provém do valor de uso nem do valor, da forma do valor, que provém da
objetivação do trabalho na mercadoria. Esse caráter, diz Marx, provém da
própria forma mercadoria (MARX. 1985, p. 71).
“O
misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que
ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como
características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades
naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos
produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles,
entre objetos. Por meio desse quiproquó os produtos do trabalho se tornam
mercadorias, coisas físicas metafísicas ou sociais.” (MARX. 1985, p. 71).
A mercadoria é algo uno em sua relação intrínseca com o múltiplo, ou
seja, só é mercadoria se houver mais de uma; é, portanto, valor de uso que
impõe uma relação de igualdade (trabalho abstrato) entre trabalhos privados,
dependente da totalidade do trabalho social. O enigma reside no fato de que as
características sociais desse sistema de produção de valores contribuem para o
encobrimento dessas relações. A abstração dos trabalhos diferenciados
naturalizou a normatividade dessas relações sociais tal qual a lei da
gravitação[15]. O
fetiche, o animismo que a mercadoria adquire na dimensão da produção, e seu
enigma são, pois, facetas de um mesmo processo social, que tem seu ápice na
coisificação das relações sociais, na tendência estrutural de naturalizar o
valor de troca.
“A
Economia Política analisou, de fato, embora incompletamente, valor e grandeza
de valor e o conteúdo oculto nessas formas. Mas nunca chegou a perguntar por
que esse conteúdo assume aquela forma, por que, portanto, o trabalho se
representa pelo valor e a medida do trabalho, por meio de sua duração, pela
grandeza do valor do produto de trabalho. Fórmulas que não deixam lugar a
dúvidas de que pertencem a uma formação social em que o processo de produção
domina os homens, e ainda não o homem o processo de produção, são consideradas
por sua consciência burguesa uma necessidade natural tão evidente quanto o
próprio trabalho produtivo.” (MARX. 1985,
p. 76)[16].
O método do pensamento burguês é acometido, desse modo, pela mesma
reificação de que são vítimas as relações sociais na sociedade capitalista.
Tomada apenas como valor de troca, a forma mercadoria é abstraída de suas
qualidades, de seu valor de uso, bem como o trabalho nela empregado. O
resultado dessa equação perniciosa, em que prevalece na consideração o elemento
quantitativo em detrimento do qualitativo, é uma relação social entre coisas e
relações reificadas - que têm de ser perpassadas pela forma mercadoria - entre
pessoas. A sociedade civil burguesa é, portanto, a sociedade das mercadorias,
em que estas, as mercadorias, acabam por se tornar “hieróglifos sociais” (MARX.
1985, p. 72), e, já que nelas está objetivado o trabalho social total, gelatina de trabalho não
especificado (MARX. 1985, p. 47), o que se vê na mercadoria aparece para nós
como feitiço – fruto do processo social de abstração dos trabalhos concretos, dispêndio de cérebro, nervos,
músculos humanos (MARX. 1985, p. 51; p. 70).
“A
figura do processo social da vida, isto é, do processo da produção material,
apenas se desprenderá do seu místico véu nebuloso quando, como produto de
homens livremente socializados, ela ficar sob seu controle consciente e
planejado.” (MARX. 1985, p. 76).
Para o desvendar dialético dos segredos do lucro e do enigma do dinheiro,
Marx enuncia (MARX. 1985, p. 79-80) a consequência institucional do fetichismo
da mercadoria em seu reflexo jurídico pela via do contrato privado de trabalho,
fundado no reconhecimento recíproco dos negociantes no mercado, do qual o
direito privado burguês é a forma de fachada, na qual está contida a mercadoria
e nesta a equivalência geral do valor de troca. Ora, o contrato requer esse
reconhecimento recíproco mediado pela igualação na troca, que, do ponto de
vista de como aparece, na “esfera
ruidosa” do mercado (MARX. 1985, p. 144), é justa. Ao contrário, à medida que
isso se desvenda, essa aparência revela-se como fruto da ideologia da “livre” troca de “equivalentes”: uma liberdade
puramente formal, pela qual o que é trocado produz mais valor, oculto nessa
relação assimétrica, do que se estaria disposto a negociar.
Na inconstância do processo de troca, que não permite que se fixe apenas
um aspecto isolado - pois ao fazê-lo se é imediatamente remetido para outro -,
a mercadoria, que é indiferente ao conteúdo, opera a metamorfose do uno para o
múltiplo, da identidade para a diferença. Necessário é, para dar conta dessa
fluidez, suspender (aufheben) essa
inconstância, colocando-se no ponto de vista da unidade: o dinheiro. A perplexidade dos possuidores de
mercadorias, que pensam como o Fausto de Goethe diante dessa inconstância – “No
começo era a ação” (MARX. 1985, p. 80-81) -, já foi
solucionada na prática pela ação humana, uma mediação social que sumiu sem
deixar vestígios (MARX. 1985, p. 84). Assim, o enigma do dinheiro é a forma
mais viva do fetiche da mercadoria (MARX. 1985, p. 85), que só quer o imediato
– instável, o insustentável para a dialética.
“O
cristal monetário é um produto necessário do processo de troca, no qual
diferentes produtos do trabalho são, de fato, igualados entre si e, portanto,
convertidos em
mercadorias. A ampliação e aprofundamento históricos da troca
desenvolvem a antítese entre valor de uso e valor latente na natureza da
mercadoria. A necessidade de dar a essa antítese representação externa para a
circulação leva a uma forma independente do valor da mercadoria e não se detém
nem descansa até tê-la alcançado definitivamente por meio da duplicação da
mercadoria em mercadoria e em
dinheiro. Na mesma medida, portanto, em que se dá a
transformação do produto do trabalho em mercadoria, completa-se a transformação
da mercadoria em dinheiro.” (MARX. 1985, p. 81).
Seguindo a via da lógica dialética hegeliana, ao utilizar o método de análise, no sentido mercadoria
e sua troca em dinheiro, Marx expõe que as tentativas anteriores de analisar a
mercadoria de forma una e isolada falharam, já que não pode ser tomada como um
fator isolado, é uno e múltiplo, é também troca, é também dinheiro, que é a
forma consumada da troca e não tem valor de uso. Pelo método de síntese, começa-se pelo dinheiro, mostra-se que o
dinheiro é o elemento imediato que põe seus momentos enquanto heterogêneos, não
contendo em si mercadoria e troca, mas implicando-os.
“O
ciclo M — D — M parte do extremo de uma mercadoria e se encerra com o extremo
de outra mercadoria, que sai da circulação e entra no consumo. Consumo,
satisfação de necessidades, em uma palavra, valor de uso, é, por conseguinte,
seu objetivo final. O ciclo D —M — D, pelo contrário, parte do extremo do
dinheiro e volta finalmente ao mesmo extremo. Seu motivo indutor e sua
finalidade determinante é, portanto, o próprio valor de troca.” (MARX. 1985, p.
127).
Para compreender a transformação do dinheiro em capital, há que se expor
a necessidade conceitual de transitar para a esfera da produção, o essencial, em contraposição à esfera da
circulação, a aparência, suscitada na
e pela arena ideológica burguesa, com a ilusão da livre e justa troca de
equivalentes, alicerçada em seu direito privado. Assim como aparece na esfera
da circulação, capital é gerado na
própria circulação a partir do dinheiro.
“O
valor torna-se, portanto, valor em processo, dinheiro em processo e, como tal,
capital. Ele provém da circulação, entra novamente nela, sustenta-se e se
multiplica nela, retorna aumentado dela e recomeça o mesmo ciclo sempre de
novo. D — D’, dinheiro que gera dinheiro — money
which begets money —, diz a descrição do capital na boca dos seus primeiros
tradutores, os mercantilistas. De fato, portanto, D — M — D’ é a fórmula geral do capital, como aparece
diretamente na esfera da circulação.” (MARX. 1985, p. 131).
A passagem da circulação para a produção, quebra a fantasmagoria causada
pela ideologia, mostrando as contradições de sua fórmula geral – ou seja, das
tentativas de a circulação ser a fonte de mais-valia (MARX. 1985, p. 133) - e
expondo a relação assimétrica, contida na dialética do senhor e escravo, na
qual está o passo essencial para gerar a auto-valorização do valor, o capital: o trabalho excedente e,
portanto, mais-valia (MARX. 1985, p.
128) -a expropriação, feita pelo proprietário dos meios de produção, do
trabalho alheio, do proprietário da força de trabalho, o trabalhador.
“O
processo de consumo da força de trabalho é, simultaneamente, o processo de
produção de mercadoria e de mais-valia. O consumo da força de trabalho, como o
consumo de qualquer outra mercadoria, ocorre fora do mercado ou da esfera de
circulação. Abandonemos então, junto com o possuidor de dinheiro e o possuidor
da força de trabalho, essa esfera ruidosa, existente na superfície e acessível
a todos os olhos, para seguir os dois ao local oculto da produção, em cujo limiar
se pode ler: No admittance except on
business.” (MARX. 1985, p. 144).
Pela via de análise de Bentham, na esfera da circulação tudo se
encaminharia como uma “harmonia pré-estabelecida” (MARX. 1985, p. 145), onde a
mão invisível do mercado – na esteira aqui de Adam Smith - regularia o
interesse universal, e cada um defendendo seu interesse privado formaria esse
resultado, o bem comum. Já Hegel mostrara em sua obra Princípios da Filosofia do Direito, que aderir a tamanha
ingenuidade somente poderia resultar na morte da vida política[17].
Aquela assimetria, a base oculta da sociedade capitalista, onde o fenômeno, o
que aparece, está sobreposto à essência, apenas à dialética é dado reconhecer.
[1] LUKÁCS,
Georg. História e Consciência de Classe.
São Paulo: Martins Fontes, 2003.
[2] Como
esclarece Habermas: “A política de estilo antigo, já pela própria forma de
legitimar a dominação, era levada a se determinar em relação aos fins práticos:
as interpretações do ‘bem-viver’ eram dirigidas para as contexturas de
interação. Isso vale também para a ideologia da sociedade burguesa. Por outro
lado, o programa de substitutivos hoje dominante é voltado tão-somente para o
funcionamento de um sistema dirigido. Ele exclui as questões práticas e, com
isso, a discussão sobre aceitação de padrões que só seriam acessíveis a uma
formação democrática da vontade. A solução de tarefas técnicas não depende de
discussão pública.” (HABERMAS, J. “Técnica e ciência enquanto ‘ideologia’”; V,
p. 330. In: Pensadores. São Paulo: 1980)
[3] KANT, I.
Crítica da Razão Pura e outros textos filosóficos. In: Pensadores,
Editora Abril Cultural, 1974; p. 274.
[4] “[...] a
própria razão se tornou um mero adminículo da aparelhagem econômica que a tudo
engloba. Ela é usada como um instrumento universal servindo para a fabricação de
todos os demais instrumentos.” (ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento: Fragmentos
Filosóficos. Jorge Zahar Editora: Rio de Janeiro, 2006; p. 37)
[5] Ver BENJAMIN,
W. “A Obra de Arte na Época de suas Técnicas de Reprodução” In: Pensadores. São
Paulo: 1980.
[6]
MARX, Karl. “Trabalho Estranhado e Propriedade Privada”. In: Manuscritos Econômico-filosóficos. São
Paulo, SP: Boitempo Editorial, 2004.
[7] Ver, por
exemplo, MARX, K. A Questão Judaica, §94.
[8] “O
homem é um ser genérico (Gattungswesen),
não somente quando prática e teoricamente faz do gênero, tanto do seu próprio
quanto do restante das coisas, o seu objeto, mas também [...] quando se
relaciona consigo mesmo como [com] um ser universal,
[e] por isso livre.” (MARX, 2004, p. 83-84).
[9] Ver MARX,
K. A Questão Judaica, §52.
[10]
“A exteriorização (Entäusserung) do trabalhador em seu
produto tem o significado não somente de que seu trabalho se torna um objeto,
uma existência externa (äussern), mas, bem além disso, [que se
torna uma existência] que existe fora
dele (ausser ihm), independente
dele e estranha a ele, tornando-se uma potência (Macht) autônoma diante dele, que a vida que ele concedeu ao objeto
se lhe defronta hostil e estranha.” (MARX, 2004, p. 81).
[11] MARX,
Karl. “Propriedade privada e Trabalho”. In: Manuscritos
Econômico-filosóficos. São Paulo, SP: Boitempo Editorial, 2004; p. 99.
[12]
“Sob aparência de um reconhecimento do homem, também a economia nacional, cujo
princípio é o trabalho, é antes de tudo apenas a realização consequente da
renegação do homem, na medida em que ele próprio não mais está numa tensão
externa com a essência externa da propriedade privada, mas ele próprio se
tornou essa essência tensa da propriedade privada. O que antes era ser-externo-a-si (sich Äusserlichsein), exteriorização (Entäusserung) real do homem, tornou-se apenas ato de
exteriorização, de venda (Veräusserung)”
(MARX, 2004, p. 100).
[13] MARX,
K. O Capital: Crítica da Economia
Política. 2ª Ed. Volume I. São Paulo: Nova Cultural, Col. Os economistas,
1985; p. 45.
[14] “[...]
o problema da mercadoria não aparece apenas como um problema isolado, tampouco
como problema central da economia enquanto ciência particular, mas como o
problema central e estrutural da sociedade capitalista em todas as suas
manifestações vitais. Pois somente nesse caso pode-se descobrir na estrutura da
relação mercantil o protótipo de todas as formas de objetividade e de todas as
formas correspondentes de subjetividade na sociedade burguesa.” (LUKÁCS, Georg.
A Reificação e a Consciência do Proletariado. In: História e Consciência de Classe. São Paulo: Martins Fontes, p.
193).
[15] “É mister uma produção de mercadorias totalmente
desenvolvida antes que da experiência mesma nasça o reconhecimento científico,
que os trabalhos privados, empreendidos de forma independente uns dos outros,
mas universalmente interdependentes como membros naturalmente desenvolvidos da
divisão social do trabalho, são o tempo todo reduzidos à sua medida socialmente
proporcional porque, nas relações casuais e sempre oscilantes de troca dos seus
produtos, o tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção se impõe
com violência como lei natural reguladora, do mesmo modo que a lei da
gravidade, quando a alguém a casa cai sobre a cabeça.” (MARX. 1985, p. 73).
[16]
Comparar análise dos escritos de 1844, em que ainda se usava a expressão economia nacional: “A economia nacional
parte do fato dado e acabado da propriedade privada. Não nos explica o mesmo.
Ela percebe o processo material da
propriedade privada, que passa, na realidade (Wirklichkeit), por fórmulas gerais, abstratas, que passam a valer
como leis para ela. Não concebe (begreift) estas leis, isto é, não mostra como têm origem na
essência da propriedade privada.” (MARX, Karl. “Trabalho Estranhado e
Propriedade Privada”. In: Manuscritos
Econômico-filosóficos. São Paulo, SP: Boitempo Editorial, 2004; p. 79.)
[17]
Cf. §§ 185-188. “A economia política é a ciência que neste ponto de vista tem o
seu ponto de partida e que, portanto, deve apresentar o movimento e o
comportamento das massas em suas situações e relações qualitativas e
quantitativas. É ela uma das ciências que nos tempos modernos surgiram como em
seu terreno próprio. Demonstra o seu desenvolvimento (e aí reside o interesse
dela) como o pensamento (cf. Smith, Say, Ricardo) descobre, na infinita
multiplicidade de minúcias que se lhe apresentam, os princípios simples da matéria,
o elemento conceitual que os impele e dirige. Se constitui um fator de
conciliação descobrir no domínio das carências esse reflexo de racionalidade
que pela natureza das coisas existe e atua, também é esse, inversamente, o
domínio onde o intelecto subjetivo e as opiniões de moral abstrata desafogam a
sua insatisfação e azedume moral.” (HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. São
Paulo : Martins Fontes, 1997; §189, Nota).