terça-feira, 24 de setembro de 2013

Mundo, quem no mundo, morte e temporalidade


[Para uma introdução ao tema ver: Acerca da Existência]


            A distinção de Heidegger de mundo em Ser e Tempo - em que “mundo” é também ente existente ou, como na língua germânica, Dasein[1] - parece se explicar primariamente pela afirmação de que mundo é o complexo de significações dadas a partir do e por o ente existente ao que o rodeia e em que ele cada vez já é.
A mundidade (Weltlichkeit) é, na análise heideggeriana, interpretada como todo-de-remissão da significatividade[2]. Ou, traduzida de outra forma, mundanidade, como Ernildo Stein esclarece, é um existenciário do ser-aí (dito aqui como ente existente); é um conceito ontológico, significando a estrutura de um momento que constitui o ente existente como ser-no-mundo[3]. O mundo do ente existente põe em liberdade um ente que é diverso do instrumento e das coisas em geral e conforme o seu modo-de-ser como ser-aí, ou seja, é ele mesmo “no” mundo. Mediante explicação do mundo ficam também visíveis os restantes momentos estruturais do ser-no-mundo.
            “Mundo é aquilo ‘em que’ o ser-aí sempre já era, é aquilo para onde já sempre retorna quando vai. O mundo é essencialmente constituído pelo ser-aí. É o lugar em que todos os entes encontram significação, mas é, ao mesmo tempo, o lugar em que já se movimenta o ser-aí que dá sentido aos entes.” (STEIN, Ernildo. Introdução ao pensamento de Martin Heidegger. p. 67)
            De outro lado, a abertura dos outros entes existentes, previamente constituída com o ser-com, contribui para constituir a significatividade, que tal qual o existenciário mundidade, se fixa no existenciário “em-vista-de-quê”. Este, por sua vez, é o fundamento em que o ente existente “em vista de que” é, ele mesmo sempre se referindo a algo ou alguma coisa ao seu redor, utilizável do mundo-ambiente¸ qualquer ente que o ente existente faz com que se lhe torne disponível.
            “O mundo do ser-aí cotidiano, o mundo costumeiro, é o mundo ambiente. O mundo que geralmente percebemos é o mundo ambiente. Os entes com que nos encontramos diariamente não são as coisas puramente subsistentes, neutras, mas os entes disponíveis, os utensílios com uma finalidade determinada.” (STEIN, Ernildo. Introdução ao pensamento de Martin Heidegger. p. 66)

            A noção heideggeriana de mundo é, como Stein afirma[4], inteiramente original. Pois, diferentemente das outras concepções filosóficas de mundo, apenas o ser humano é ser-no-mundo, por que é ele quem o constitui em significação, e só é humano porque é no-mundo. Esse mundo não é uma mera soma dos entes, porquanto, por um lado, o ser humano não se soma a eles, por outro, os entes puramente subsistentes estão num mundo não-humano – ou seja, mundidade não existencial, mas categorial. Na expressão ser-no-mundo, o “no” não indica um lugar circunscrito e não requer uma espacialidade prévia. Tal expressão tem o sentido do “estar em casa”, o sentimento de “pátria” e de familiaridade com o que rodeia o ser-aí.
Em contraste, Albert Camus representa, em sua obra O estrangeiro (1942), o absurdo do existir por meio de seu personagem Meursault. O livro de mesmo ano, O mito de Sísifo, explica-o pela gratuidade do estar jogado aí, num mundo estranhado, que não se pode explicar. Este ser humano privado do sentimento de pátria se sente um estrangeiro.
O ser-no-mundo é, pois, constituição-fundamental do ente existente e por ela, todo modus do seu ser é codeterminado. Desdobrado em vários momentos e na sua unidade originária, o ser-no-mundo é preocupação (Sorge), que por sua vez é o que determina em geral o ser do ente existente. O ser-no-mundo mostra que não se dá um mero sujeito sem mundo, e que não há um eu isolado que se dê sem os outros.
O ente existente em sua cotidianidade não só está em um mundo, contudo se comporta em sua relação ao mundo segundo um modo-de-ser predominante. O quem do ente existente é respondido pelo ente que cada vez se é, sendo seu ser cada vez o seu – essa determinação mostra uma constituição ontológica e uma indicação ôntica, onde esse ente é cada vez um eu[5], mero indicador formal.
Porém, pergunta-se Heidegger pelo quem do ente existente na cotidianidade, já que, como aludido, é o modo de ser em que no mais das vezes está, ou seja, tomado por seu mundo, absorvido por ele. Esse é, dentre outros, um momento em que Heidegger apresenta sua proximidade com o pensamento de Kierkegaard[6], notadamente na categoria deste de multidão em contraposição à de Indivíduo.
“A multidão compõe-se, de fato, de Indivíduos; deve estar, portanto, ao alcance de cada um tornar-se no que é, um Indivíduo; absolutamente ninguém está excluído de o ser, exceto quem se exclui a si próprio, tornando-se multidão.” (KIERKEGAARD, Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra como Escritor, p. 102)
A caracterização ontológica do quem – aquilo que se mantém como idêntico e que se relaciona com a multiplicidade - é um existenciário, conduzindo a pesquisa que se dirige a esse fenômeno a estruturas do ente existente de igual originariedade à de ser-no-mundo: ser-com e Dasein-com[7].
“‘Os outros’ não significa algo assim como o todo dos que restam fora de mim, todo do qual o eu se destaca, sendo os outros, ao contrário, aqueles dos quais a-gente mesma não se diferencia no mais das vezes e no meio dos quais a-gente também está. [...] O ‘com’ é um conforme-ao-Dasein, que ‘também’ significa a igualdade do ser como um ser-no-mundo do ver-ao-redor-ocupado.” (HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. §26; p. 343).
O mundo em que o ente que existe está constantemente jogado, já é cada vez o que se compartilha com os outros – esse mundo é mundo-com. Desse modo, o ser-em é ser-com os outros – seu ser-em-si do intramundano é ser-“aí”-com[8].
O ente em relação ao qual o ente existente se comporta como ser-com, mas não tem o modo de ser do instrumento utilizável, é ele mesmo. Desse ente ele não se ocupa, se preocupa. Por essa razão, é preciso que o ser-com seja interpretado a partir do fenômeno da preocupação (Sorge), ou o que pode ser entendido por outras traduções para o português como “cuidado”, “curar-se”, “estar na lida”. A ocupação (Besorgen), de outro lado, é o trato do ver-ao-redor com o utilizável do intramundano.
O ente existente como o se absorver no mundo da ocupação, ser-com relativamente aos outros, não é si-mesmo. O outro, sendo uma duplicata do si-mesmo, revela uma “ninguendade” em que ser-um-entre-outros é simultaneamente ser todos e ser ninguém. A-gente (das Man) ou impessoal é um existenciário e pertence à constituição positiva do ente existente como fenômeno originário – de imediato eu não “sou” “eu”, no sentido do si-mesmo-próprio, mas sou os outros no modo de a-gente. Deste modo, como similarmente no pensamento de Kierkegaard, é preciso que haja uma assunção autêntica de si como facticidade, existência e discurso.             
“De que modo            o ser-aí é ser-no-mundo? Ao modo do estar-jogado. O ser-aí está inelutavelmente jogado na existência. Mas o ser-aí assume o estar-jogado no projeto e articula o projeto do estar-jogado em um conjunto significativo.” (STEIN, Ernildo. Introdução ao pensamento de Martin Heidegger. p. 67).
O ente existente é aberto para si mesmo própria ou impropriamente. Essa abertura diz respeito a que esse ser está em jogo. Aquele torna-se “essencial” (wesentlich) na existência própria que se constitui como o ser-resoluto (Entschlossenheit) precursor – este que é um modo da propriedade da preocupação, contendo a totalidade originária do ente existente e a originária estabilidade-de-si-mesmo[9].
O ser-resoluto precursor é o ser-para (Sein zum) o assinalado poder-ser mais-próprio. Segundo Heidegger, o deixar-se advir a si na manutenção    da possibilidade assinalada é o fenômeno originário do adveniente ou “futuro” (Zukunft) – este é o ser para a morte do ente existente, o qual é propriamente adveniente no adiantar-se em relação a si e como ente sendo já sempre adveio a si.
No dizer heideggeriano, revindo a si adveniente, o ser-resoluto, presencizando, põe-se na situação. A luta de Heidegger para a caracterização da temporalidade é a mesma da dificuldade da terminologia ontológica. Porém, observando-se as preposições usadas, tanto do português como do latim e alemão, pode-se ter maior clareza na exposição do dito. Portanto, o ser que tem firmeza, que é resoluto, constantemente vindo (revindo) a si direcionado para o que vem (adveniente[10]) coloca-se ante a... (presencizando[11]) a situação.
A temporalidade possibilita a unidade de existência, factualidade e decair constituindo originariamente a totalidade da estrutura-da-preocupação. Assim, preocupação é ser para a morte. Futuro em primeiro lugar de importância, ser-do-sido e presente são os êxtases (Ekstasen) ou as estases da temporalidade.    
Desse modo, explicita Heidegger[12], “para...”, “retro...”, “junto...” manifestam a temporalidade como ἐκστατικόν, ou seja, adjetivo grego relativo a ἔκστασις, proveniente do verbo ἐξίστημι, o qual, em última análise, literalmente significa pôr fora de si – não é à toa a semelhança com o verbo latino exsistere. É, pois, a temporalidade o originário “fora de si” em si mesmo e para si mesmo.
“Heidegger constata que o ser-aí sempre é uma totalidade no seu correr para a morte. O ser-no-mundo é possível, porque o homem sabe que morre. Somos existência, porque morremos. O correr adiante-para-a-morte ressalta de forma vigorosa a condição fática, existente, compreensiva do ser-aí.” (STEIN, Ernildo. Introdução ao pensamento de Martin Heidegger. p. 69).
No belíssimo filme pós-iugoslavo de Milčo Mančevski Sombras (Senki, 2007), há a representação de noções comuns quando da reflexão sobre a morte. Tendo como pano de fundo a história da região dos Bálcãs, região permeada por conflitos e disputas territoriais e étnicas, o cinema pós-iugoslavo veio à tona como um palco da dissolução, arquivo de traumas e da imagem da morte. No filme, “sombras” entram em contato e se entranham na vida de um médico, após este sofrer um acidente de carro e quase morrer. As superstições e impressões mais comuns histórico e culturalmente disseminadas sobre a morte são paulatinamente inseridas.
De forma contrária, Heidegger em sua interpretação existenciária mostra a morte como possibilidade extrema e indisponível, é a possibilidade-de-ser que o ente existente tem de assumir cada vez ele mesmo, pela qual está em jogo o seu ser-no-mundo. Ela se desvenda como a possibilidade mais-própria, irremetente e insuperável. Sendo o ente existente aberto para si mesmo, esse momento estrutural da preocupação tem sua concretização mais-originária no ser-para-a-morte. O ente existente morre factualmente, enquanto existe, no modo do decair. Esse morrer se funda na preocupação quanto a sua possibilidade ontológica, preocupação que se desdobra a partir da verdade do ser[13].                

Bibliografia:

CAMUS, A. O estrangeiro. 2ª Ed. – Rio de Janeiro: BestBolso, 2010.
________. O mito de Sísifo. 3ª Ed. – Rio de Janeiro: Record, 2006.
Dicionário Latim-Português. 2ª edição. Porto: Porto Editora, 2001.
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Campinas, SP: Editora da Unicamp; Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2012.
KIERKEGAARD, Søren Aabye. Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra como Escritor. Lisboa: Edições 70, 1986.
PEREIRA, Isidro. Dicionário Grego – Português/Português – Grego. 8ª Ed. Braga, Portugal: Livraria Apostolado da Imprensa, 1998.
STEIN, Ernildo. Introdução ao pensamento de Martin Heidegger. EDIPUCRS (Editora da PUC de Porto Alegre), 2002.

           



[1] HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. §26; p. 343.
[2] HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. §26; p. 355.
[3] STEIN, Ernildo. Introdução ao pensamento de Martin Heidegger. p. 67.
[4] STEIN, Ernildo. Introdução ao pensamento de Martin Heidegger. p. 66-67.
[5] HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. §25; p. 333.
[6] Como também em sua crítica à noção de instante. Ver nota 2 em HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. §68; p. 919.
[7] HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. p. 331.
[8] HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. §26; p. 345.
[9] HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. §65; p. 881.
[10] Do latim a preposição de acusativo ad: para. Semelhante a zu, de dativo, que forma no alemão Zukunft.
[11] Do latim a preposição de ablativo prae: diante de, em frente de, etc. Que forma praesens, entis do verbo praesum.
[12] HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. §65; p. 895.
[13] HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. §50; p. 691.

Nenhum comentário: