quinta-feira, 10 de outubro de 2013

A problemática da imagem em Platão e as formas imagéticas psicológicas: “Da categoria da imagem à imaginação"



Introdução – “O que é a arte e o que não é a arte”

            Este tipo de expressão em nossa época pode ser tida até mesmo como uma grande heresia. É o artigo de fé, a menina dos olhos da “arte contemporânea”, ou “pós-moderna” (ou “pós-histórica” como o diz Arthur Danto[1]). A partir do momento em que na Era Industrial o modelo do processo de produção em série, em larga escala – como lançou mão o conhecido Henry Ford, no início do século XX -, das indústrias passou a ser modelo para as artes, e estas bebendo do supra-sumo, da quintessência de sua época, mimetizando os meios de produção, portanto algo com um mimo burguês[2], presenciamos ou literalmente tropeçamos no que já se questionou como o fim da era da arte. Os meios de representação tornaram-se o objeto de representação, segundo nos esclarece a tese de Danto. É uma era “pós-histórica” por a narrativa ter acabado, a narrativa privilegiada, mas não seu tema – cabe, jogado na pluralidade, ao artista agir como lhe apraz. Ou ainda, qualquer coisa pode ser arte e qualquer pessoa, um artista. Reproduzo de forma semelhante as palavras oraculares e fragmentárias de um ser irascível que viveu em Éfeso, na Jônia do século VI da Era Anterior. Assim disse Heráclito: τόν τε Ὅμηρον ἔφασκεν ἄξιον ἐκ τῶν ἀγώνων ἐκβάλλεσθαι καὶ ῥαπίζεσθαι, καὶ Ἀρχίλοχον ὁμοίως (Fr. DK B42) [3] 
            O corrosivo Heráclito opera em uma incisão, assim como a República o fará mais tarde, que indica não querer deglutir qualquer coisa sem prévia seleção – para falar no palavreado de Salvador Dalí[4], flertando com outro fragmento heraclítico[5]: ὕες βορβόρῳ ἥδονται μᾶλλον ἢ καθαρῷ ὕδατι (Fr. DK B13). A distinção pelo gosto (ou paladar) ou por juízo valorativo aqui não nos interessa, nem mesmo uma distinção essencial. Indo mais a fundo, a tentativa de diferenciação entre os seres humanos de outros animais pela arte, ou pela capacidade de produzir imagens de mundo, ou reproduzi-las, etc., - como parece ter feito Aristóteles em sua Metafísica - também já não tem uma boa aparência. Numa época onde a retina se cansa e fica entediada, em meio a uma explosão midiática auxiliada pela tecnocracia, instaura-se uma proliferação imagética compulsiva, uma “ditadura do visual” – expressão que Francis Wolff toma de empréstimo em Por trás do espetáculo: o poder das imagens[6].
A insurgência de consciência e investigação com relação à capacidade imaginativa, ou reprodutora de imagens, ou imaginação, desponta na Idade Antiga – e ainda guia muito das nossas perspectivas de mundo. Em Nascimento de imagens[7], Jean-Pierre Vernant se detém no pari passu da pesquisa acerca da definição, encetada pela filosofia platônica, de “o que é a imagem”.  

Da categoria da imagem à imaginação

Platão, já no século IV da Era Anterior, reunira as várias maneiras de produções imagéticas existentes até então, com o escopo de apresentar uma teoria geral da imagem. No Sofista, Teeteto é interpelado pelo estrangeiro de Eléia para que formule uma definição integrada da essência daquilo que é a imagem (εἴδωλον), e o que há de comum nos objetos múltiplos que Teeteto nomeia[8].
As produções imagéticas em geral (εἰδωλοποιική), as atividades fabricadoras de imagem, tanto as artes “plásticas” (pintura, escultura, estatuária, etc.) como as artes das musas (música, poesia, dança), as artes “cênicas” (tragédia, comédia) e a sofística pertencem ao âmbito da μίμησις, o que se pode traduzir, com abertura de sentido, por imitação; ou ainda, ao domínio da μιμητική, a atividade imitadora. No diálogo República, a μίμησις emerge como εἴδωλον δημιουργία, ou demiurgia de imagem, pareada com a asserção presente no Sofista: “A μίμησις é qualquer coisa como uma fabricação (ποίησις); fabricação de imagens, é claro, não de realidades” [9].
Já Xenofonte, de quem Platão segue a via, como mostra Vernant, em Ditos e feitos memoráveis de Sócrates, submete o vocabulário de μῖμος a certo deslocamento de sentido – como antes era tratado, principalmente, na comédia -, para se referir também ao trabalho do pintor e do escultor. Entretanto, Xenofonte o realiza de maneira menos rigorosa e sem intenção para com um viés teórico.
“Platão dá um passo à frente: atribui a μιμεῖσθαι um valor mais preciso e de certo modo mais técnico; alarga ao mesmo tempo seu campo de aplicação ao fazer do ‘imitador’ o traço comum e característico de todas as atividades figurativas ou representativas. A orientação dessa trama de vocabulário vê-se assim modificada, o equilíbrio entre os três termos implicados no ato de μιμεῖσθαι – o modelo, o imitador e o espectador – rompe-se em proveito dos dois primeiros, entre os quais se fixa doravante a relação de imitação” (VERNANT, Jean-Pierre, idem, p. 6).
O vocabulário corrente de μιμεῖσθαι, no século V da Era Anterior, era usado por um lado com o sentido de ludíbrio, o espectador percebia o mímico remedando aquilo ou quem estava remedando, de outro lado, pela imitação esse simulador se punha semelhante às maneiras de quem se propôs a mimar. Ao contrário, Platão, exceto quando o usa em sentidos correntes, coloca ênfase na relação da imagem com a coisa, fazendo emergir daí o que Vernant chama de ligação de semblância; o que se explicita é a questão da natureza e da essência do parecer[10].

Funerary stele for Eupheros, portraied as an ephebe athlete, holding a strigil. Around 420 BC.
Exhibited at the Kerameikos Archaeological Museum (Athens). Picture by Giovanni Dall'Orto, November 12 2009.
Por essa perspectiva, a obra daqueles que produzem imagens é análoga aos fenômenos que não são derivados da ação humana, mas fazem parte da própria natureza, são produtos, por assim dizer, de uma arte divina. Desse modo, são as sombras (σκιά), as visões dos sonhos (ὄνειρος), os reflexos na água e nos espelhos (κάτοπτρον).


Anonymous funerary stele for a woman, holding a mirror. Around 425/400 BC.
Exhibited at the Kerameikos Archaeological Museum (Athens). Picture byGiovanni Dall'Orto, November 12 2009. 
“Se pegares um espelho e o mostrares em todas as direções, em um instante farás o sol e os astros do céu, em um instante a terra, em um instante você mesmo e os outros animais e os móveis e as plantas e todos os objetos dos quais falamos ainda há pouco. [...] - E, de certo modo, o pintor também faz uma cama, não? – Sim, ele diz, uma cama aparente (φαινομένην), ela também” (República, 596 d-e apud VERNANT, Jean-Pierre, idem, p. 7).
O que é conferido à imagem a partir de então é um status ontológico, palavra que deriva de ὄντος, particípio presente do verbo grego ser (εἰμί), e de λογία, um adjetivo substantivado que se refere ao domínio do λόγος ou discurso. Portanto, a partir da dialética vem à tona, à superfície discursiva, o ser da imagem (εἴδωλον). Filha da imitação, ela é a partir da dialética e é “um tal outro” (ἕτερον τοιοῦτον), não é aqui um ser verdadeiro, mas apenas semelhança (εἰκν ὄντως), como responde Teeteto[11].

Achilles tending the wounded Patroclus (Attic red-figure kylix, ca. 500 BC)
Com isso, a filosofia platônica inaugura uma problemática da imagem, sendo ao mesmo tempo herdeira e liquidadora da tradição da imagem arcaica. O emprego do vocabulário arcaico de imagem pode ser atestado pelo uso de εἴδωλον em Homero, exempli gratia na Ilíada, quando da aparição de Pátroclo a Aquiles, ou pela aparição da mãe de Odisseu no Hades[12]. O caso do εἴδωλον arcaico envolve três modos de uso: a imagem do sonho (ὄναρ), a aparição feita por um deus (φάσμα) e o fantasma de um defunto (ψυχή). Esse uso remonta a uma noção de “aparição”, na qual valores religiosos estão inclusos, essa imagem traz a marca da ausência consigo, é um “duplo”, não é uma representação contida no foro íntimo do sujeito, mas uma aparição que se manifesta momentaneamente um mesmo no nosso mundo, se revelando um outro pois pertence a outro mundo. Essa dialética da presença e da ausência se reinscreve em Platão, ela muda de registro e de certa maneira se inverte. O εἴδωλον na filosofia platônica é tratado com um “tal outro”, traduzido aqui problematicamente por um “segundo objeto igual”.

Kleobis and Biton, kouroi of the Archaic period, c. 580 BCE.
“‘Segundo objeto igual’, a imagem, sendo de certo modo definida como o mesmo, depende também do Outro. Ela não se confunde com o modelo, já que, denunciada como não verdadeira, não real, não traz mais, como no caso do εἴδωλον arcaico, a marca da ausência, dos outros, do invisível, mas o estigma de um não-ser realmente irreal [...]” (VERNANT, Jean-Pierre, idem, p. 10).
O que na imagem arcaica tinha a ver com aparição cede lugar a um parecer, a uma aparência. Como distingue Vernant, o interesse não é mais o de uma “análise psicológica”, mas a determinação do status ontológico da imagem. Como a imagem é da ordem do parecer, do φαίνειν, ela se faz ver como aparência do que não é, ela se refere à coisa que imita, manifesta um aspecto exterior.
Colocando-se em um ponto de vista contrário ao de alguns autores, como Gilles Deleuze em Lógica do Sentido[13], Vernant defende a tese de leitura de que a distinção presente no Sofista entre duas formas de produção imagética não entra em contradição com a afirmação geral formulada na República: “A pintura e a mimética em conjunto - ὅλος ἡ μιμητική – realizam sua obra longe da verdade” [14]. No Sofista distingue-se duas formas de mimética ou fabricação de imagens (εἰδωλοποιική): a de cópias-ícones (εἰκόνες), que tem como característica reproduzir as proporções reais (συμμετρία) de seus modelos; e a de simulacros (φαντάσματα), aqueles que provocam ilusões para o espectador[15].

Demetria and Pamphile-(Funerary Stele), Athens, 4th c. BC. Kerameikos Archaeological Museum in Athens.
Por outro lado na República[16], distingue-se que a finalidade da pintura, por exemplo, não é a de representar a realidade como ela realmente é, mas a sua aparência, é imitação da aparência. A cama do pintor, ainda que seja uma imitação que respeite as proporções e simetria do modelo original (εἰκών), não é a essência da cama, a Ideia (εἶδος). Mas também no Sofista, εἰκών, φάντασμα e εἴδωλον, mais à frente no diálogo, aparecem como aspectos do não-ser e da falsidade[17].

6th c. BC representation of an animal sacrifice scene in Corinth.
One of the Pitsa panels, the only surviving panel paintings from Archaic Greece.

So-called "Mycenean lady". Fresco, 13th century BC. From the acropolis at Mycenae.


Mycenaean Woman (Fresco) ca. 1300 BC
A interpretação platônica da imagem e a teoria da μίμησις, definem um estágio de elaboração da categoria da imagem no pensamento ocidental, e seus efeitos se fazem ver ainda hoje, na contemporaneidade, ainda que como crítica. Para Vernant, é importante ressaltar que, apesar de ter com isso aberto caminho para uma exploração psicológica da imagem, não se encontra em Platão um desenvolvimento direto manifestado nessa direção; e por pelo menos duas razões. De um lado, não há um distanciamento marcado entre sensação e imagem, de outro, por a imagem estar ligada à μίμησις, ela apenas pode imitar uma aparência já dada exteriormente. É somente a partir de Aristóteles, notadamente em De Anima, que uma distinção entre sensação, imagem e opinião começa a ser esboçada[18].
A φαντασία em Platão não designa a imaginação como faculdade, capacidade de produção de imagens mentais, porém, um estado do pensamento em que se dá assentimento espontâneo à aparência de que se vestem as coisas. Como o termo φαντασία deriva do verbo φαίνειν, parecer, não é de surpreender a ligação da imagem ao domínio da δόξα, pois este vocábulo vem de δοκεῖν, ou seja, parecer, assemelhar-se. A φαντασία tem a ver, portanto, com os efeitos que podem ser ocasionados, ela é aparentada à sensação, αἴσθησις[19]. Decorre disso a preocupação com o tipo de arte e o conteúdo a ser repassado para os cidadãos na República.

Maenad and satyr. Side A from an Attic red-figure Nikosthenic amphora, ca. 525–515 BC.


Medea killing one of her sons. Side A from a Campanian (Capouan) red-figure neck-amphora, ca. 330 BC. From Cumae. Ixion Painter
“Os vários gêneros de μιμήματα, que Platão chama εἴδωλα, εἰκόνες, φαντάσματα, não são apreendidos em sua dimensão de fatos de consciência. São vistos como produtos objetivos de certos tipos de arte” (VERNANT, Jean-Pierre, idem, p. 15).
A dissociação entre μίμησις, imitação, e φαντασία só irá se atestar mais tarde, no século II da nossa Era, exempli gratia em Flávio Filóstrato, que confere à imaginação até mesmo a capacidade de contemplar o invisível, de ir além das aparências através do mundo das Formas, e tomando por exemplo artistas como Praxíteles e Fídias, considera que a μίμησις pode representar aquilo que viu, mas a φαντασία, por conta de sua σοφία, também o que não viu, o que Platão somente havia conferido à Filosofia[20].

Marathon Youth or Ephebe of Marathon.
Bronze statue of a young athlete, found in the sea near Marathon (Attic coast). The left hand was replaced at a later date by another shaped as a lamp.
Work of the Praxiteles school, ca. 340-330 B.C.
H. 1.3 m (4 ft. 3 in.) 


Roman Seated Zeus, marble and bronze (restored),
following the type established by Phidias (Hermitage Museum).
about 13 m (42 ft) tall”




[1] DANTO, Arthur C. Após o fim da arte – A arte contemporânea e os limites da História. São Paulo:
Odisseus/Edusp, 2006.
[2] “A indústria cultural acaba por colocar a imitação como algo de absoluto. Reduzida ao estilo, ela trai seu segredo, a obediência à hierarquia social. A barbárie estética consuma hoje a ameaça que sempre pairou sobre as criações do espírito desde que foram reunidas e neutralizadas a título de cultura. Falar em cultura foi sempre contrário à cultura. O denominador comum ‘cultura’ já contém virtualmente o levantamento estatístico, a catalogação, classificação que introduz a cultura no domínio da administração.” (ADORNO, T. e HORKHEIMER, M., Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006, p. 108)
[3] Tradução livre: Tanto Homero quanto Arquíloco disse [Heráclito] ser dignos de ser expulsos dos concursos e surrados com vara.
[4] Por exemplo em Libelo contra a arte moderna.
[5] Tradução livre: Os porcos se deleitam mais com a lama do que com água limpa.
[6] WOLF, Francis. “Por trás do espetáculo: o poder das imagens” in Muito além do espetáculo. Editora do SENAC: São Paulo, 2005, p. 17.
[7] VERNANT, Jean-Pierre. “Naissance d’image” in Religions, histoires, raisons. Paris: Maspero, 1979, p. 105-137 [“Nascimento de Imagens”, trad. José Otávio Guimarães].
[8] PLATÃO. Sofista, 240a 3-5.
[9] República, 599 a 7; Sofista, 265b 1, apud VERNANT, Jean-Pierre, idem, p. 5.
[10] VERNANT, Jean-Pierre, idem, p. 7.
[11] Sofista, 240 a-b.
[12] Odisseia, XI, 205-215. É digno de nota para esse trabalho o emprego de, respectivamente: “ψυχὴν” (205); “σκιῇ” e “ὀνείρῳ” (207) e “εἴδωλον” (213).
[13] VERNANT, Jean-Pierre, idem, p. 11, nota 13.
[14] VERNANT, Jean-Pierre, idem, p. 13.
[15] Sofista, 235 e 6; 236 c 6.
[16] República, 598 b-c.
[17] Sofista, 240 a-b; 264 c-d.
[18] VERNANT, Jean-Pierre, idem, p. 36.
[19] VERNANT, Jean-Pierre, idem, p. 19.
[20] VERNANT, Jean-Pierre, idem, p. 36.

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