sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Sobre Filosofia e gozar na boca

      A invasão do pensamento técnico-instrumental, do pensamento não-prático no sentido aristotélico é um óbvio lugar comum quando se fala sobre modernidade. O soterramento do pensamento técnico sob todos os outros, o know how que sabe como, mas não sabe por que, onde e quando parece implodir cada dia mais as esperanças hegeliano-marxistas da formação de um ethos comum porque a triste constatação de que a técnica, apesar de vazia, preenche de uma maneira plena os espíritos vazios, e estes, pela lei da maioria, aceitam e impõem a técnica não somente como explicação, mas depreendem dela uma metafísica do mundo, que não é ruim por ser metafísica, mas que é ruim por ser uma metafísica ruim. É um diagnóstico calamitoso. O mesmo diagnóstico aplica-se ao sexo.
      O mito moderno que quer desmistificar todos os mitos, pensa que eles são encaminhamentos de uma técnica rudimentar até a mais elaborada (esta,obviamente, a moderna) ou uma compilação delirante, ou quando muito, fruto do medo de mitos e historias inverossímeis que tentam e falham em explicar "o mundo". O senso comum pensa o Kama Sutra uma compilação de posições sexuais bizarras ou inusitadas . Um senso um pouco mais "esclarecido", mas não menos idiota, pensa o Kama Sutra como sendo uma rizível abstração simbólica de deuses e da lógica antiga, uma extrapolação que se mostra tanto mais ridícula quanto mais se aproxima do mito. Porque o moderno senso comum e talvez um pouco mais que isso já elegeu a técnica como verdade -- aqui, há a redução que reduziu a redução do mundo, algo tipicamente europeu...-- não consegue aceder a qualquer coisa que escape à técnica. Pois se tudo é técnica e ela é Verdade, é porque se reduziram todos os corações.
      Todos estão preocupados com seu desempenho, querem saber como obter mais prazer, conquistar mais parceiros, em não só construir o corpo para o sexo perfeito, mas para dizer a frase perfeita no momento perfeito para um sexo perfeito. Poucos se igualam, neste aspectos, aos antigos vedas da índia, aqueles sábios que com a mesma delicadeza que possuíam para pensar acerca do cosmos e de seus deuses, a mesma delicadeza que possuíam para fazer filosofia, ou talvez algo mais alto e mais nobre que a filosofia, a empregam para pensar sobre o sexo.
      Quando debruçamo-nos sobre nossas práticas sexuais, entretanto, é possível visualizar não só uma gigantesca orgia de seres grosseiros: é possível ver como um complexo jogo simbólico e talvez efetivo que ocorre sob os lençóis. esta guerra contra a tecnização do mundo, onde muitos comparecem ao fronte mas poucos lutam, pois lutar é criar e, sem saber, a maioria das pessoas reproduz, pura e simplesmente, o modus operandi erudito, figurando, portanto, apenas como construtores de pontes mais refinados e, paradoxalmente, igualmente grosseiros. Apesar disso, muito se avançou no ímpeto roussauísta da conquista de direitos, no entanto, a conquista de direitos e a emancipação européia -- que é seguida pela maioria da humanidade-- reduzem o mundo a um só: porque já se deu muito sofrimento, aqueles que o geram se equiparam ao que há de falso, e o movimento emancipador é o verdadeiro. Se os hábitos sexuais mudaram substancialmente desde os jacobinos, ainda visualiza-se desrespeito e dominação, se o que os filósofos quiseram até agora foi o mundo emancipado, foi a custo da redução do mundo pela Verdade. Quando, no filme pornográfico, a atriz engole fartas ejaculadas, é porque esta forma de sexo será reproduzida entre os casais, e porque a indústria pornográfica vende o que se quer, e o que se quer, o que se busca, é a opressão e o terror, então a Verdade se mobiliza contra esta opressão, e em nome do ser humano realizado e emancipado, reduzimos o humano ao Humano e as Perspectivas em Verdade, e então se diz: esta mulher, neste filme, teve de engolir o esperma do homem porque o esperma é, em nossa sociedade, marcadamente nojento, logo ela o fez para corresponder às expectativas sociais que desejam desmoralizá-la, isto é dito quando não são considerados o fetiche da submissão e até quando são considerados, pelos seres da Verdade, em alguns casos.
      Por vezes penso que abre-se uma nova efetividade também quando se dão duas perspectivas incomunicáveis, mas infinitas em si mesmas...quando visualizo por uma outra perspectiva, abre-se, então, uma nova visada. O lugar que exigiu do "sapiens" sapiens o desenvolvimento de meios que possibilitassem sua sobrevivência, que possibilitasse o crescimento de seu enorme e hipertrofiado Deus, que não cessa de crescer, só pode ser classificado como inóspito. a ciência como religare, a religião como compreensão e vice-versa são necessárias somente na narrativa de expulsão do paraíso, da necessidadedo trabalho e do sofrimento obrigatório. Tanto se deu nas tradições orientais como nas ociedentais, o otimismo dos "filósofos felizes" não é, de forma alguma, hegemônico, já a filosofia como "amor" é a ocultação de questões demasiadamente profundas.
      O mundo hostil apresenta- se, então, como efetividade a diversos sujeitos, a diferentes culturas. A perda da necessidade da própria existência acompanha, por muitas vezes, a perda da necessidade de uma cultura , de um modo de vida, da humanidade, da vida, do mundo e da Verdade. A vida que se constrói da novidade do lixo tecnológico e proclama-se como ideal não deixa de revelar-se como estranha e vazia, mas também a vida emancipada -- a contragosto dos marxistas-- pode revelar-se como tal.
      Quando, a noite, assiste-se ao filme pornográfico e vê-se aparar com a boca o fruto do grande prazer masculino, pode-se ter a impressão de que algo muito profundo está a acontecer sob vestes  de frivolidade, assim como é na comédia e não na tragédia, que se revela o que há de mais profundo sob as vestes do cômico. Quando, portanto e enfim, assiste-se à derradeira cena que finda, de modo padrão, o sexo filmado, há profundezas inexploradas por ali: o líquido abstrato que já se volta a um resultado, em algo náo visto --e, no mundo mecanizado, o que não pode ser visto, torna-se visto, para poder existir-- passa a Ser, marcar sua presença no mundo.
      O orgasmo solipcista agora é compartilhado da forma do ritual da transubstanciação do meio em um fim: aquilo que era resultado de um imenso prazer e que poderia dar início a uma nova vida não necessária, contingente, passa a alimentar àquele que prova. Quando não somente a boca, mas o estômago abriga o líquido seminal, se torna alimento, se torna necessário aos viventes, se torna vital. a falta de sentido em levar um vida a um ser em um mundo hostil é uma questão superada einexistente pelo prazer de tornar-se alimento, necessário a quem já vive. É quando o que era vital se torna ainda mais vital, ou seja, quando a reprodução se torna alimentação, que este retorno ao mais básico configura-se como alegria e afirmação de uma união, quando não a inveja do linga, do pênis viril, como quer a psicanálise, mas do seio feminino guia a prática sexual, podemos dizer que atingimos uma efetividade: cá estão duas concepções incomunicáveis. A apropriação do que era outrora um fim que atingiria de modo mais marcado à sociedade a um alimento, que atinge o sujeito, mostra a alegria de se tornar não só alimento, mas gostoso, literalmente, como sugerem os estímulos que se dá ao parceiro afim de que se elogie o banquete em vídeo, é a superação alegre da tristeza fundamental de se viver em lugar que reconhece somente o humano universal, um homem, uma mulher, um profissional etc e isto é doloroso ao sujeito, que não é um universal, é um mero indivíduo, ele então pergunta se ele está palatável, como se aquilo dependesse efetivamente dele. Sua alegria em ser útil e especial pois está dando vida -- e assume que o que mais se quer é ter vida-- aproxima-o de seus deuses, pois se o maiz é sagrado, tornar-se maiz é tornar- se sagrado. Este prazer alia-se ao de ser desejado, degustado, de configurar-se como necessidade alimentar e frivolidade, de ser "gostoso".
      Para concluir este breve escrito, não direi, apesar de possuir acentuadas desconfianças, que filosofia " é qualquer coisa" mas para ir contra isso é necessário definir satisfatoriamente, oq ue se quer dizer por "filosofia". Penso que filosofia é pensamento e que assim como a modernidade, para Enrique Dussel, existe para culpabilizar outros por não serem modernos, em uma manipulação kafkiana de ser culpado sem saber o porquê ta,béma manipulação da definição de filosofia possui sua faceta política: para civilizar aqueles que não são civilizados, para ensinar a pensar os que "não pensam". É certo, no entanto, que, se a filosofia não for "qualquer coisa" -- e penso na aposta de Heidegger: introduzir alguém à filosofia é absurdo, pois é impossível estar fora dela -- é, possível, certamente, fazer filosofia com qualquer coisa.

Igor França

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