quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Palestra: A ascensão conservadora em São Paulo


"O meu direito de cidadão é antes de mais nada o meu direito fundamental de consumidor." (Safatle)

I.L.C.

A irônica frase, proferida por Vladimir Safatle durante a palestra "A ascensão conservadora em São Paulo" - realizada por iniciativa do "Coletivo dos Estudantes em Defesa da Educação Pública", nesse dia 28 de agosto na Faculdade de Ciências Sociais da USP -, expressa bem o paradigma da despolitização do pensamento atual brasileiro sobre o que é a política, por princípio uma prática concernente ao âmbito público, portanto avessa a privatismos. Aliás, a frase, se retirada de seu contexto, poderia levar às mais nefastas confusões. Contra qualquer interpretação unilateralmente subjetiva, o próprio título da palestra já em si nos convida para uma reflexão crítica, da ordem do que é o contemporâneo, de modo a dar-nos as bases do que está em jogo. Veicula um importante diagnóstico de época que, por mais que indique uma abordagem restrita ao Estado de São Paulo, na verdade insere-se num cenário um tanto maior que lhe da suporte, não só nacional como de ordem global. Mas o êxito do título não está tanto na visão de conjunto que lhe condiciona, que uns até poderiam dizer ausente, mas está no movimento que carrega consigo. Apresentando não meramente um fato sociológico, que alguns positivistas talvez pretendessem mensurar de modo quantitativo, afim de atestar ou não tal diagnóstico da "ascensão", o título, de modo diverso, pra não dizer contrário, expressa um fenômeno cuja realdade é dinâmica, agora, acontecendo. Somente uma leitura com os pés no chão é capaz de tal olhar.


Que diagnóstico de época é esse no qual insere-se a ideia básica da palestra? é a de que há em curso um avanço difuso de certo "orgulho reacionário". Não é que a direita nunca tivesse dado as caras antes, o que seria um absurdo do ponto de vista histórico tal que, em todas as épocas, o conservadorismo sempre foi figura componente central da luta pela emancipação coletiva; claro que, sob a égide do mantenedor da ordem vigente, como bem expressa a noção de "conservar". Em outras palavas, faz parte indissociável da luta por justiça social a figura do oponente que, justamente quando inexistir será enterrado juntamente com as mazelas que acarreta e conserva, porque delas se beneficia. A esta visão dual chama-se luta de classes. Todavia, esta presença no cenário político do conservadorismo nem sempre se faz de maneira tão explícita. Penso que nesta hora seja o momento de radicalizar o termo, passando a designação de conservador para reacionário. A reação é justamente a expressão de um espírito contra-revolucionário que se apresenta, se manifesta como claramente um jogador interessado, mas não só, também como sendo o próprio jogo e portanto as próprias regras. A direita representa o discurso e a prática hegemônica, como bem salientou em sua fala a também presente na mesa Marilena Chauí. O que passa a ser possível observar quando a direita assume seu papel neste teatro pós-dramático que nos engloba a todos é uma sistemática torção de conceitos de sua parte, um palavreado vazio que visa, pela distorção formal da linguagem, conectar elementos díspares, ou melhor, antagônicos. É o caso de expressões como "capitalismo humanitário", ou "natureza humana (em geral, para eles, egoísta)". Ou seja, trata-se de uma emulação com fins de dissimulação. Pois é este o espírito atual do oponente, cercado de todos os lados pela catástrofe social que vem desenvolvendo e que cada vez mais lhe aparece como sua própria nêmesis, para usar de uma expressão de David Harvey em discurso sobre os acontecimentos de Wall Street (Cf. Os rebeldes na rua). As trincheiras estão sendo montadas com os destroços que lhe motivam, semelhante à ira de um leão que para dar o bote recolhe-se e então avança, para usar uma expressão de Marx sobre a vergonha que sentia por sua pátria e que ao mesmo tempo e por isso mesmo lhe servia de força para continuar lutando. Vivemos, como Hegel via seu próprio tempo à altura da redação da Fenomenologia do Espírito, sob o signo do negativo, em tempos de franca transição... precisamos saber disso. A diferença é que à época de Hegel o que surgia à sua frente eram as promessas de uma civilização no elemento do Esclarecimento, cuja modernidade que consigo engendrava apontava para a realização da razão no Estado. Ao contrário, até mesmo do que esperava Hegel - talvez por ranços românticos mas, se não, ao menos por uma nostalgia do ethos único que caracterizou a nascimento da política na pólis ateniense -, a modernidade consolidou não a razão no, mas sim a razão de Estado. O mesmo padrão despótico contra o qual voltaram-se os burgueses insurgentes tornar-se-ia em suas mãos recém apoderadas a medida da política, uma não política porque de privilégios, um Estado de socialismo exclusivamente para os ricos. São tais privilégios, mais do que nunca inflados conforme a própria lógica da economia que lhes sustenta, o que agora está ameaçado de explosão. Entretanto, não se trata mais da luta do direito contra o privilégio, mas sim da justiça contra o direito que falhou em sua missão emancipatória.


Neste horizonte de fundo, em mesa chamada por Ricardo Musse os palestrantes Vladimir Safatle, André Singer e Marilena Chauí teceram suas considerações. Abordando cada um um prisma do problema do conservadorismo, oferecem ao público importantes momentos deste todo comum. Fiquemos com a palestra do Safatle. Ele orienta-se pelo que chamou de "conservadorismo filho bastardo do lulismo" que, tendo sido o "lulismo" caracterizado como o resultado da união de três fatores, a saber, em suas palavras, "a consolidação de uma política heteróclita de alianças, a criação de um sistema de larga escala de assistência social e de ampliação real do salário mínimo com uma integração social pela ampliação do processo de consumo", teria gerado uma nova classe no entanto desfavorável ao dito lulismo. Entende uma diferença entre esta nova configuração assumida por tais novos agentes e o que chamou de "conservadorismo orgânico", de tipo já imanente às relações sociais em sua história de desenvolvimento. Em outras palavras, a ascensão reacionária recente, somando forças com o conservadorismo já atuante e de classe distinta, explica-se em grande medida pelos desenvolvimentos sociais postos em prática pelo governo do PT que, gerando uma "nova classe média", todavia a mesma voltou-se contra a  própria política que lhes subsidiou.


Quatro são as razões elencadas: primeiramente um típico conservadorismo dos costumes; em segundo lugar, um anti intelectualismo na política; em terceiro, uma naturalização da relação entre a igreja e o Estado, que com o aparecimento das igrejas evangélicas e pentecostais, cujo modelo fora desenvolvidas dos Estados Unidos, trouxeram junto a teologia da prosperidade. Quanto a isto, Safatle diz que desde os anos 60 da ditadura militar, por exemplo em cultos batistas, já pregava-se o anticomunismo. Um quarto elemento seria a paranoia securitária. Se pergunta: o que fazer com os conservadores dentro da base, que de papel secundário que tinham tornaram-se hoje atores principais? Ele mesmo responde que "conseguem surfar dentro da queda da hegemonia cultural da esquerda" (Cf. A perda da hegemonia). Então se pergunta: "quem melhor do que um defensor do consumidor para defender os anseios dessa nova classe", tendo sido surgida pelo aumento do poder de consumo da mesma. Contrapõe ao fato em questão uma hipótese, a de que a "nova classe média" fosse o resultado de intervenções por parte do Estado que tivesse investido em eixos estruturais como educação e saúde públicas, e não em paliativos que somente confortam melhor os rumos da exploração e opressão capitalistas. Se tivesse sido esse o caso, investimentos estruturais, tornado-os assim de qualidade, suprimir-se-ia então a necessidade vigente do serviço privado para satisfação das demandas da sociedade. A não necessidade de se procurar uma rede privada para sanar estas carências estruturais liberaria este dinheiro investido das despesas orçamentárias dos indivíduos e das famílias, resultando uma folga financeira análoga à do aumento salarial, que é no caso o acontecimento atual. Daí que conclui a frase com que abrimos esta resenha crítica, de que é compreensível que a "nova classe média" (ou melhor, para já adiantar a temática de Marilena Chauí, a nova classe financeiramente beneficiada, distinção que se faz valer na medida em que não incorpora por completo o conjunto de valores da classe média típica, carregando consigo uma identidade de gênese) pense algo como "o meu direito de cidadão é antes de mais nada o meu direito fundamental de consumo", posto que a realização de suas necessidades vem se dando pela via das mercadorias. O que se tem é a política sendo subsumida ao mercado. Atrelado à esse quadro privatista do que era para ser da ordem dos serviços públicos, se tem o recuo que a esquerda brasileira e em larga medida mundial passou nas últimas décadas. Quando a nova classe vê que aquilo que seria a proposta diferencial de um governo de esquerda, a saber, a publicização dos serviços fundamentais, como algo distante do horizonte esquerdista das pretensões partidárias, seria "racional" apoiar, podemos dizer, os candidatos S.A.C.*. Por fim, Safatle ressalta que o governo Dilma é o governo com menos intelectuais dos últimos 20 anos, e aponta para um "processo paulatino de divórcio [...] o que demonstra a baixa capacidade de produção de idéias [...], de expor ideias que tenham um mínimo de radicalidade, que possam criar um tipo de adesão e engajamento para pessoas que querem algum tipo de transformação estrutural". Eis seu diagnóstico final: se por um lado a esquerda vem perdendo hegemonia no discurso cultural, esvaziada de uma radicalidade possível ao longo das últimas décadas, de outro lado a ala conservadora que apoiou o lulismo aparece como oferecendo o melhor discurso político, que assimilando o ideário mercadológico da nova classe, desponta no horizonte eleitoral como os portadores de suas aspirações.


Para conferir os vídeos dos palestrantes, vão os links abaixo:



*S.A.C.: Serviço de Atendimento ao Consumidor

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